Obrigado Brasil, já 10 anos

 


Tinha que sair de Buenos Aires. Foi uma loucura achar que conseguiria tirar a minha mãe da loucura. Tinha uma fé absurda no poder da palavra. Passei dezessete anos tentando tirar essa mulher da cama. Os primeiros cinco, morrendo de medo quando ela se enfiava na minha. Pinel, o psiquiatra francês, considerado pai da reforma psiquiátrica, por ter tirado as correntes das pessoas, considerava que era preciso fazer os hospícios no meio da natureza, porque as pessoas recuperariam, por osmoses, o equilibro perdido. Eu estava completamente desequilibrado. Antes de mudar para o Brasil, já tinha ido ver consultório numa cidade do interior de Buenos Aires, San Antonio de Areco, cidade de romance do século dezenove, pampa. Lá tem “pulperia”, o antigo bar dos gaúchos, onde os piões bebiam, e os fazendeiros chegavam lá, e faziam todo tipo de comentário idiota que fazem os patrões. Estudei psicologia para não ter patrão e não acordar cedo.

A meta era viver numa cidade com mar, com Laura tínhamos pensado alguma cidade do Rio. Começamos por Porto Alegre, porque foi onde achei emprego, e onde tinha amizades. Fundamental a retaguarda afetiva, quando você vai mudar de país. São muitas mudanças, muita novidade. Outro jeito de ler o mundo. É disso que tratam as diferenças culturais. Cheguei cheio de certezas, cheguei com o projeto de acabar meu primeiro romance, mesmo em 2014, mesmo sem ter noção nenhuma do trabalho que é acabar um romance. O fascista de Borges, dizia que era preciso o tempo passar, para poder contar algumas coisas. Ainda assim, eu tentei. Comecei na máquina de escrever, batia duro, chorando. Doía mesmo, botar para fora cada letra, cada palavra, voltar passar por onde passei. Mas quem voltava não era o mesmo que tinha vivido aquilo.

O cara que saiu da Argentina não volta mais, não sou a mesma pessoa que saiu. O Brasil me fez uma pessoa melhor. Mais aberta. Mais sensível. Ou para melhor dizer, aqui o povo é mais sensível. Aqui na Bahia, não há o que dizer. As pessoas guiam-se pela energia. Existe uma expressão maravilhosa que é “o Santo bate ou não bate”. Sigam tentando explicar essas coisas com a neurociência ou a química, para a gente o negócio é simples: o Santo bateu ou não bateu. E quando bateu… Não consigo imaginar namorar de novo com uma argentina. Nossa cultura é muito mais fechada, mais reprimida. E a gente não liga muito para o cheiro.

A primeira vez que ouvi falar de cheiro, morava em Florianópolis, foi num grupo contra o golpe. Na verdade não ouvi, li. Uma amiga de Pernambuco me enviou por mensagem “cheiro”, eu perguntei: isso é o quê? “Um cheiro no cangote”, respondeu ela. Eu levava dois anos no Brasil, assim que perguntei o que era cheiro e o que era cangote. Quando ela conseguiu me explicar, eu fiquei alucinado. A primeira vez que me deram um cheiro, foi uma gerente de uma UBS, também nordestina, após eu conseguir que a prefeitura não demitisse a farmacêutica dela. Eu arrepiei. Eu diretor tinha que ficar quietinho, e fiquei. E quando depois você descobre o que acrescenta se ligar com o cheiro na cama… Na minha pouca experiência no Brasil, o sexo aqui é com o corpo todo, a sensibilidade com o toque, saber se esfregar, se conectar com o ritmo e ir criando a harmonia. E a gente sabe a origem do melhor som.

Dez anos é um bom tempo. Estando aqui nasceu sobrinha na Argentina, fiz mestrado em literatura, coisa que nunca na vida tivesse imaginado. Quando viemos para aqui, a meta era voltar cada um com um mestrado, eu queria para dar aulas na universidade. Estando aqui já perdi amigo em Buenos Aires, já perdi amiga em São Paulo, já me perdi. Mas para me encontrar. E encontrei-me de novo, em Salvador. E aqui, que comecei entender, minhas percepções, de um outro jeito. Meu analista em São Paulo, na primeira sessão, me disse: você é intuitivo, o problema é que você não da bola a tua intuição, você paga para ver.

Tou tentando melhorar o primeiro, mas de pagar para ver, nunca vou deixar. Desde criança eu quero experimentar as coisas, não quero ficar com o que contam. Se ficasse com o que contam das favelas, não saberia das belezas delas, não saberia como é que são os rostos desses jovens, que a mídia mostra como monstros. São jovens negros, que você da bom dia, boa tarde, boa noite, e eles respondem. São meninos com o rosto duro. Alguns do medo, outros da violência. São meninos que querem o que a maioria quer: ostentar. Mas meninos que não tiveram harmonia em casa. Trabalhei com crianças que moravam na rua. Chegar no mundo sem ser desejado, é muito peso. Sentir que você é um peso para sua mãe, que faz mal para a vida dela, não é fácil não.

Me faz mal morar longe do mar. Me faz bem morar em Salvador, ainda que seja um romance do século dezenove com eletricidade. É ver a repetição do relacionamento social imposto pela escravidão, mantido pelas famílias fazendeiras, reproduzida pelo povo em geral. É só ver a distância com que a classe média trata às pessoas negras. É só ver como os próprios trabalhadores negros tratam os garçons e as garçonetes no bar. Nada melhor para conhecer alguém, que ver como trata garçom. Mas também é ver os sorrisos nos rostos, e os brilhos nos olhos, de quem têm uma vida dura, que sabem que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso não impede que repitam: é bonita, é bonita e é bonita.

Obrigado mesmo, Brasil, país amado.

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