60 anos de um golpe e em 10 já vivi outro


 

Vivi os 50 anos do último golpe militar no meu primeiro ano no Brasil. Para um argentino, ver entrevista a um torturador livre na capa do principal jornal de Porto Alegre, era um absurdo. Nasci no oitenta em Buenos Aires, com três anos vivi a volta da democracia, com cinco julgaram os comandantes da ditadura, com nove Menem indultou eles, com dezesseis a primeira mobilização pelos vinte anos do golpe. Com Kirchner os militares voltaram para a cadeia, julgaram quem não tinha sido julgado, prenderam padre, ex-ministro da fazenda. Mas nunca são prendidas as mil famílias que mandam fazer aos militares, que botam os ministros da fazenda. América Latina é uma grande Casa Grande.

Cresci me perguntando como é que a sociedade não fazia nada, diante de tudo aquilo. Era medo? Tive uma resposta sobre isso em Rosario, numa Jornada de Psicanálise e políticas públicas que fui convidado, organizada pela agrupação La Masotta, onde ouvi Emilce Moler, uma das sobreviventes de “La noche de los lápices”, quando a ditadura argentina sequestrou e desapareceu estudantes que pediam passe livre na cidade de La Plata. “Eu era ‘a filha do delegado’, uma menina boa, que fazia as compras para os vizinhos, querida, compartilhava as coisas com meus amigos, uma aluna boa. Como foi que eu virei ‘esse ser’, esse lixo social, desde o golpe até setembro de ‘76? Nesse lixo social que eu fui: subversiva, terrorista, desprezível, ‘olha o que fez-lhe aos pais’. Quando eu virei isso? Quanto tem a ver a mídia? Quanta é a penetração da mídia, para que o casal de aposentados que morava do lado da minha casa, ao qual eu fazia as compras, religiosamente, toda quinta feira, acompanhava eles à féria, porque conhecia eles da vida toda, e não foram capazes de tocar a campainha na porta da casa dos meus pais, após terem visto o operativo policial, para saber após seis meses se eu ainda era viva? Só isso.

Isso é medo? Por isso eu coloco ‘Memória, vergonha, medo…’ Isso era medo? Pode ser por medo não ligar pelo telefone e perguntar: ‘vive a menina que carreguei nos meus braços, desde que nasceu? Eu, permitam-me lhes dizer: isso não é medo, existem outras coisas que vocês como psicólogos devem saber muito melhor do que eu, que temos que desentranhar. Senão pegamos como clichés que fazem uma cobertura e justificam todas as condutas de uma sociedade, e após dez anos a gente diz: ‘nossa, mas a gente não se deu conta’. Eu quero que a gente se dei conta do hoje, do dia a dia”.

Vivi o golpe em Santa Catarina. Foi duro demais. Levava só dois anos no Brasil, fazia mestrado em letras na UFSC. Ouvi à altitude da que falavam os professores que diziam-se de esquerda, para atacar o meu partido. O dia após a votação do impeachment a Dilma, participei da inauguração do comité de campanha de um amigo, então presidente do PT. Balões vermelhos no teto, um diretor nacional do partido alentando para a campanha, às pessoas presente. Eu com a minha ex-mulher e um amigo psiquiatra, também filhado no partido, dizendo: isso é esquizofrênico. Em 2016 teve muito candidato que tirou a estrela do santinho, que tiraram o vermelho, queriam ser vistos como os menos petistas possíveis. É só dar um Google para conferir. Aconteceu no pais todo.

Uma pesquisa da Datafolha publicada hoje diz que “41% de autodeclarados petistas ou simpatizantes [das 2.200 pessoas entrevistadas] são mais céticos: 59% não acreditam na volta do totalitarismo, 24% veem alguma chance e 13%, totais condições para tal". Olhem o nível de desinformação do nosso lado. Tentaram dar golpe, todo mundo viu, não conseguiram, e ainda assim tem pessoas achando que existem condições para um golpe militar no Brasil. Para que dar um golpe militar no Brasil, se com a atomização da Câmara dos Deputados, você consegue dar um golpe fazendo deputados levantarem a mão? O golpe com militares só foi preciso na Bolívia, porque lá não tinham com o quê condenar Evo. O máximo que tinham conseguido foi fazer uma ex do Evo mentir, e ele perdeu um referendum por mais uma reeleição. Na Bolívia existem três leis pré-incaicas: não roubar, não mentir e não ser preguiçoso. Não tendo cometido Evo crime nenhum, não tiveram como tirar ele do governo pelo judiciário, e tiveram que colocar os militares na rua.

“A força moral é tudo que um revolucionário tem”, disse Álvaro García Linera, ex-vice-presidente da Bolívia, preso por ter sido guerrilheiro, torturado, a quem muitos consideram o maior teórico político do mundo. Álvaro fugiu com Evo para Argentina. Lá viveu dando aulas na universidade, formando quadros técnicos com condições de pagar um mestrado particular. Na Argentina mestrado é pago, graduação é livre e de graça. Che disse que “só existe revolucionário num povo revolucionário’. Ele não era um revolucionário na Bolívia? Seguindo a lógica dele, não. O que a gente não tem dúvida nenhuma, é que a esquerda brasileira está muito longe de uma revolução. Repete com comodidade o statu quo, o racismo estruturado, a manutenção de uma classe nos salários mais altos. A presidenta do partido dos trabalhadores, parece com as trabalhadoras brasileiras? E não é coisa só do meu partido, acontece na região toda.

O que aprendi no Brasil, é que não é só problema do Brasil, América Latina toda está estruturada do mesmo jeito. O que muda é a força das organizações nacionais e populares, que defendem a soberania nacional, a independência econômica e a justiça social; mas os inimigos são os mesmos, e agem desde fora da região. Na hora de criticar ao PT, não podemos considerar a força do PT sem levar em consideração que até 1985 no Brasil os analfabetos não tinham direito de votar, foi feita uma emenda constitucional que reconheceu “o direito facultativo” de votar. Quase 30% da população sem direito de votar. Aqui foram séculos mantendo ao povo afastado da participação política. Quando a classe média universitária, que na vida pisou uma favela, chega com que o problema é que “o PT abandou as bases”, eu falo para elas: o Estado é grande de mais. Quando você chega no governo, precisa colocar teus quadros na administração do Estado, para cumprir as políticas implementadas. E o problema do Brasil é que quando o PT mandou esses quadros para Brasília, ou para o governo estadual, no bairro não tinha outras pessoas para assumir essas responsabilidades. Compartilhei essa caracterização com Edinho Silva, prefeito de Araraquara, quem fora ministro da Comunicação de Dilma durante o golpe, e ele concordou. Foi numa aula para a Universidade Nacional de Rosario, durante a pandemia (a parir de 1h 23´).

Eu não esqueço de quem não quis ir para rua defender Dilma, e depois foi em todas as mobilizações do Fora Temer. Essas pessoas foram cúmplices do golpe? Ou só não queriam ser consideradas petistas? Foi medo ou indiferença social? Egoismo? Acharam que tentar evitar um golpe não era defender a democracia, e sim defender um governo petista? A premissa foi: defender um petista nem que a democracia estiver em risco? Tenho um ranço dessa classe média branca universitária, que na puta vida botou um pé na lama, que nunca trabalhou no Estado, que nunca militou numa comunidade e critica como se soubesse fazer política…

O dia após o golpe tive aula no mestrado, com um desses que na prévia do golpe batia no PT. O professor começou a aula perguntando para um colega “por quê está com essa cara?”. Pelo de ontem, respondeu o colega. “Ah, por isso!”, disse o professor como se não tivesse importância. Isso?, disse eu, me segurando na cadeira, para não pular no pescoço do cara. Você chama “isso” a um golpe de Estado?, acrescentei. “Essa é a história do Brasil, uma história de avanços e retrocessos”, acrescentou o professor com tom de superado. Essa é a história do Brasil nada, disse eu puto da vida, me diz quando na história o Brasil tinha avançado tanto?! Me diz quando foi que pobre, povo preto, viveu melhor?, e assim fui. O cara, com um salário assegurado de nove mil, não estava nem aí se tinha golpe ou não. Ele era professor de uma federal, morando numa das ilhas mais bonitas do mundo, pegando alunas pela sua condição de professor, ainda que não lavasse o cabelo, e nada mudou na sua vida com o golpe.

Tem pessoas que não estão nem aí se outro sofre. O professor não fez nada para defender a democracia, justificou sua indiferença social nos aliados do PT, e eu disse que fazer política é que nem jogar baba: você não joga com os melhores, você joga com quem assume o compromisso de ir no campo todas as semanas, num mesmo dia e horário. Perón dizia “se vamos ficar só com os melhores, vamos ser poucos”. E o problema é que ainda são poucas as pessoas envolvidas na política, para o Brasil ter a justiça social que merece. E são muitas as pessoas que fazem política e não querem saber nada com partido político. É preciso falar de política, é preciso promover a participação política das pessoas, para se organizarem para transformar a realidade. A política é a única ferramenta que as pessoas pobres têm para mudar suas realidades.

É preciso lembrar que não só os militares não foram julgados no Brasil, também não foram julgados os responsáveis do golpe contra Dilma, da injusta privação da liberdade do Lula, de ter evitado Lula participar das eleições, e deixar a responsabilidade de cuidar do povo brasileiro nas mãos de Bolsonaro, que disse que a pandemia era uma gripezinha.

A força de um governo progressista depende da participação popular e a participação popular, durante os governos progressistas, depende das políticas de governo; mas não só. Lula chama ao povo à participação política, mas nem tudo mundo no partido faz o que Lula manda. No Brasil não estamos enfrentando só as famílias proprietárias das terras, quanto corporações transnacionais que tiram lucro do valor dos nossos recursos naturais, e por isso são parceiros lógicos dessas poucas famílias brasileiras, que financiam golpes, que mandam desaparecer empregados, que mandam matar povos originários para invadir suas terras, que promoveram o fim dos direitos trabalhistas, e quando a gente corria o risco de morrer afogado em três dias, fizeram as pessoas desconfiar da vacina. São as mesmas famílias de sempre, mais as que foram se somando...


A gente na América Latina ainda precisa falar dos donos das casas grandes.



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